O momento da minha viagem que vos vou contar em seguida não foi o que mais me marcou ou mais me mudou. Mas é o que me faz mais feliz, um ano depois, quando volto a ler o que vivi naqueles dias. Normalmente, quando viajamos, trazemos muitas coisas para casa. Trazemos souvenires, fotografias, memórias e histórias para contar. Mas deixamos pouco. Pelo menos, pouco que valha a pena ficar lá. Eu deixei uma coisa na Amazónia. Uma coisa que só eu poderia ter deixado. Uma brincadeira. E o que lá deixei, espero, continuará a gerar sorrisos muito depois de todos os que me receberam terem esquecido a minha cara. Num mundo em que nos preocupamos muito com o que trazemos da vida, gosto, ainda que seja por um momento, por um parágrafo, de ficar feliz com o que deixei. 

 

 

O MACACO NA REDE

 

 

Acampar na floresta é divertido mas as pouquíssimas pessoas que a habitam já não a vivem assim. São os ribeirinhos e, se em parte ainda são caçadores e recolectores do que a floresta tem para suprir as suas necessidades, através da pesca e de alguma caça, na sua maioria, são agricultores. Durante uma manhã visitámos a casa onde o Gélio cresceu com a sua família que ainda lá mora. Num barraco sem janelas e porta de entrada, vivem a sua irmã e o marido, o seu irmão e o que pensei serem os seus três sobrinhos, para além de uns quatro cães, algumas galinhas, uma arara e três macacos. Estes últimos foram os primeiros a receber-nos, despencado dos ramos das árvores quando viram o barco chegar e apressando-se a subir para as nossas costas, brincar com o nosso cabelo e comer as bananas que o guia trouxe, sabendo que a brincadeira era boa para entreter turistas.

 

 

 

 

 

 

São como pequenas crianças: gostam de brincar, de perguntar o porquê das coisas (só que com as mãos, não com palavras) de mimos e de balançar na rede lá de casa. Só não são mais parecidos com as crianças dali porque trabalham bem menos.

 

 

 

 

 

 

Ao atravessar o mato desmatado que dava para a plantação de mandioca, nas traseiras da casa, cruzámo-nos com o pai do Gélio e com duas crianças que acabavam de voltar de lá. Levavam enxadas na mão e alguidares de água improvisados na cabeça e tinham a cara preta da sujeira do trabalho. Vão à escola mas ajudam no campo e foram tema de conversa com o Glauco, e outros viajantes que fizeram parte do meu grupo durante a maioria da viagem. Sim, conhecem a escola mas provavelmente não conhecem nem virão a conhecer grande parte dos livros que são de leitura obrigatória no nosso mundo globalizado. Conhecem a agricultura mas não conhecem adubos ou não os podem pagar e a sua mandioca tem que competir com as plantações industrializadas que vão desmatando massivamente outros lugares da floresta, enquanto, aqui, podem retirar apenas 2/3 da produtividade dos seus campos. Conhecem cana-de-açúcar mas têm dentes cariados e os médicos de família não fazem a viagem. O Glauco defendeu que seria melhor que o Estado chegasse até aqui. Eu defendi que sim mas que não desta forma ou, então, não de todo. Será que a presença intermitente dos cuidados de saúde, educação e assistência social tornam estas pessoas mais capazes de viver por estas bandas ou, na tentativa de chegar, pelo menos um pouco, a sociedade torna estas pessoas ainda mais esquecidas? Foi uma pergunta difícil de esconder e que pairou na minha mente durante toda essa tarde. Porque, enquanto o sol não se pusesse, os meninos estariam provavelmente a vergar as costas debaixo do sol das duas da tarde, enquanto eu pensava e escrevia. E até agora, pergunto-me se não seria muito mais simples e, talvez, mais feliz, viver alienado de saber que existem outras coisas, lá no mundo real, quando nas águas há tanto peixe, nas árvores tanta fruta e tanta brincadeira quando se salta de um ramo para o rio.

 

 

 

 

Uma das crianças com a plantação de mandioca por trás.

 

 

 

 

Eu preparado para saltar para o rio.

 

 

UMA NOVA BRINCADEIRA

 

 

Como qualquer surfista, de um copo meio cheio a um lago sem fim à vista, não há corpo d’água que não suscite um intenso desejo de tentar, de alguma forma, cortar com um rail de uma prancha a sua superfície. Quando subi pela primeira vez à lancha que nos levava à pousada, pensei imediatamente em procurar o local onde as ondulações provocadas pelo motor do barco rebentariam. Mas claro que isto era algo saído dos meus sonhos, para além de que as ondinha provocadas pelo barco não tinham força nenhuma e a margem é bem mais rara do que o canavial de troncos submergidos que acabavam por dissipá-las.

Não há, no entanto nada que uma corda não resolva. Só faltava a prancha. Durante dias, coloquei a piada no ar, para ver se alguém se levantava de sua cadeira, durante algum almoço e a agarrava. Mas habituei-me a receber não muito mais do que uma pequena risada que cortava qualquer possibilidade de nos pormos a cortar madeira. Até que, durante um passeio de barco, o Revelino respondeu, embora de forma um pouco desinteressado com um “seria legal mesmo”. Era a minha chance. Depois da hora de almoço, reuni as tropas e coloquei metade da pousada a trabalhar na nossa prancha de wake surf. Cortámos uma tábua de dois palmos para que esta ficasse mais ou menos com um metro. Com uma serra elétrica e, depois, com uma plaina, demos-lhe um nose (parte da frente da prancha) arrendondado e um tail quadrado. Shapámos-lhe (ou seja, demos forma) o roker desbastando o fundo e o topo e, com um facão e dois pregos, colocámos-lhe uma quilha desenhada também por nós.

 

 

 

 

Estava orgulhoso do nosso trabalho para o qual clientes e cada trabalhador do lodge contribuiu com ideias, ferramentas e músculos. Partimos para a floresta, nessa noite, e a tarde do dia seguinte seria destinada a descansar. Para mim, para o Revelino e o Gélio, seria dia de experimentar a nossa obra de arte.

 

 

 

 

 

 

Na tarde seguinte, logo depois do almoço, apenas eu estava com vontade de me fazer ao rio. O Revelino estava entretido com um jogo de UNO e demasiado cheio para se mexer. Eu entrei na partida, mais para controlar a passagem do tempo do que por interesse em acabar as minhas cartas. Joguei mas batendo o pé e contando os minutos até que, no fim da partida que o Revelino ganhou, coloquei as cartas em cima da mesa e avisei que, caso não nos puséssemos em marcha, corríamos o risco de a terra girar e sol desaparecer. Fomos lá para baixo. Gasolina no jerrican, crocs emprestados nos pés, para não me cortar e uma corta desengonçada com um cabo de pau na ponta. Ao colocar a prancha na água, apercebi-me da sua pouca flutuabilidade. Mas isso não seria problema pois o shape da prancha faria com que esta se colocasse acima da água assim que ganhasse velocidade suficiente. Coloquei-me sobre a plataforma e pedi ao Revelino que desse gás ao barco. Durante alguns segundos, resisti submergido numa espécie de triste comédia enquanto batalhava com a força da água e era arrastado pelo barco, tentando levantar o nose da “prancha” e fazer com que esta me fizesse pairar, triunfante, sobre as águas da Amazónia. Mas, entre as prováveis risotas de quem assistia ao espetáculo de not-stand-up-comedy (porque, lá está, não me conseguia levantar) e o meu desespero, o cabo que me segurava cedeu e eu fui ligeiramente catapultado para a frente. Todos riam. Muito. Mas eu, cuspindo água pela boca, não seria derrotado. Tentámos mais uma vez, com o arrancar diretamente da água e só agarrado pela corda. Não funcionou. Outras tristes tentativas se seguiram, sem sucesso e, quando percebi que o pessoal estava a perder a paciência, desisti. Era a derrota do engenho. A morte na praia do surfista da Amazónia.

Quando nos preparávamos para subir e assumir o falhanço, desce, como quando a virgem ou o próprio filho de deus aparece a alguém na copa de uma qualquer árvore (pelo Brasil, costumam ser goiabeiras, veja-se o caso da ministra Damares), uma prancha de bodyboard. Com um tubarão branco desenhado a sorrir para a fotografia diante de um fundo amarelo-pôr-do-sol, foi a reviravolta que esperamos nos filmes mas não na realidade. A cozinheira lembrara-se da existência do brinquedo perdido num canto qualquer. E a brincadeira ganhou um novo alento. Ao constatarmos que a prancha era feita de esferovite e que não tinha um fundo em fibra que suportasse qualquer tipo de pressão, percebemos que o surf teria que ser deitado. Funcionou e demos algumas voltas ao rio brincado com o facto de não haver quilhas e de poder deslizar lateralmente até quase ser puxado de costas para o barco. Mas não chegava. Estava ainda Iemanjá dentro de mim a gritar que, para cumprir a missão, teria que olhar a alta velocidade e de pé toda a floresta em meu redor e gritar “Amazóniaaaa”. E gritar deitado não dá jeito nenhum. O Revelino podia até ser o rei da selva mas, ali, eu era o rei dos mares e estava disposto a quase tudo para o provar. Num ímpeto heroico gritei: “ bora lá que agora vou tentar em pé”. A prancha começou a pairar na água. Todos ficaram em silêncio. E eu quase pude ter tempo de esboçar um sorriso mas, assim que a resistência foi um pouco mais forte, a prancha vergou. Mais um momento de derrota. Mas um momento em que também percebi: “ela flutua, só precisamos de algo que faça com que aguente a pressão inicial. E se, numa ideia maluca e um pouco perigosa, pregarmos a nossa tábua de madeira por cima desta?” E assim foi.

 

 

 

 

Mandaram vir os pregos que chegaram prontamente da casa dos arrumos e, com um martelo e um serrote, a prancha mais precária que a floresta já vira estava montada. E, quando o barco puxou este advento da criatividade, voilá! Lá estava eu, a surfar a Amazónia. Não durou muito tempo porque a quilha tinha perdido parte do seu sentido e demorou um pouco para captar a essência daquele misto entre bodyboard, wakeboard e surf. Mas, algumas tentativas mais tarde, entre manobras e curvas, olhava para a mata com uma sensação quase imperial de ter conquistado alguma coisa.

 

 

 

 

Mas melhor que isso foi passar o brinquedo primeiro ao Revelino e depois ao Gélio. Eles nunca tinham tido semelhante ideia e, depois de algumas tentativas falhadas de se colocar em pé (a tarefa é muito complicada para quem a experimenta pela primeira vez, mais ainda com uma prancha assim), os passeios deitados em cima da prancha colocaram em seus rostos um sorriso que eu ainda não tinha visto. Éramos três crianças a torcer uns pelos outros numa brincadeira em que todos ganhavam e, como não havia regras, nem quilhas, nem técnica, cada nova tentativa era a descoberta de uma nova possibilidade, rodeada pelo verde da paisagem e do sol que descia devagarinho. Foi rir até acabar o combustível.

 

 

 

 

 

 

 

 

Hoje, que me estou a ir embora, conversámos em conjunto sobre a possibilidade de se construir uma prancha em madeira, mais larga e mais flutuante, com um desenho mais refinado. Quem sabe se, um dia, daqui a muitos anos, não se vai contar a história da primeira vez que um miúdo maluco vindo de Portugal trouxe a ideia de brincar com pranchas dentro do rio e se essa brincadeira não ficou, desde então nos sorrisos da Amazónia.

 

 

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