Qual é a sensação de revisitar, anos mais tarde, um lugar que era “nosso”, quando éramos crianças? Na minha experiência, tudo parece impossivelmente pequeno. Lembro-me muito bem, por exemplo, do tamanho imenso que tinha aquela parede branca contra a qual minha bicicleta, num belo dia de Verão, se destruiu, enquanto eu aprendia (obviamente sem sucesso) a andar sem as mãos no volante. Voltei, uns anos depois. Claro, a parede ainda era suficientemente grande para destruir uma bicicleta (ou seja, ainda era uma parede), se a versão adulta de mim mesmo quisesse, por algum motivo, visitar o hospital. Mas definitivamente parecia menos ameaçadora do que nos meses que se seguiram ao dia em que o meu avô (que mal conseguia andar) correu na minha direção como se tivesse de se certificar que eu ainda estava vivo. Não sei o que o terá deixado tão nervoso… Claro, o ar menos ameaçador da minha parede pode dever-se, em parte, ao fato de que as coisas que estão quietas são perigosas apenas se formos nós a exercer a violência contra elas. A versão adulta de mim mesmo é menos propensa a embarcar em tais empreendimentos. Mas, mais que tudo, a parede parecia chata. E pequena.
E é por isso que minha última viagem foi uma surpresa. Não era um lugar novo. Mas os olhos através dos quais eu vi Marrocos acrescentaram-lhe magia, em vez de subtraí-la. As paredes brancas ficaram, estranhamente, maiores.
Quando eu era criança o deserto era areia fina e nada. Quase não lhe prestei atenção porque só estava preocupado em fincar os olhos no mar, em busca de ondas. Quando o vi agora, no entanto, o deserto contava-me tantas histórias. Não é que parecesse maior ou menor. Estava era pontilhado de sabedorias dispersas trazidas a mim pela humilde experiência que veio devagarinho com o passar dos anos. Informações que se ligavam por meio da imaginação – a parte do meu eu de dez anos que não foi a lugar nenhum.
Contrastes. Por Henrique Isidoro.
Não era apenas areia. Era a poeira que os berberes não deixam entrar no chá quando o servem lá do alto, em suas tendas. Olhei para as dunas brancas e vi a capa de bolhas de ar que se forma acima do líquido, retendo as impurezas que estragariam a bebida. Vemos muitas pessoas nas tendas, à beira da estrada, alienadas de nós enquanto conduzimos. Mas, assim como suas vidas parecem distantes, as suas vozes também costumam ecoar longe.
Lá aconteceu de conversar (através de um amigo marroquino que traduziu do berbere para o inglês) com um homem que parecia incorporar esses personagens que eu construí na minha mente. Não era dono de quase nada. A casa onde morava por uns tempos foi esculpida diretamente na montanha de pedra vermelha que encontrava o mar, numa praia deserta, utilizada apenas pelos militares de vez em quando, e por este senhor. Um buraco na face da encosta era a sua cozinha, denunciada pelo bule cuidadosamente plantado em cima de uma pedra. Era a única coisa que se assemelhava a um objeto trazido do “mundo real” para aquela areia quente. Presumi que a outra caverna na montanha fosse onde ele dormia, mas não perguntei. Tinha um burro rabugento, também, e uma cana de pesca velha. Tinha descido do deserto na esperança de trazer peixe, mas não teve sucesso.
Não tinha dinheiro. Não tinha carteira, documentos ou trabalho. Descera a montanha inteira, talvez na noite anterior ou de manhã cedinho e, agora, montado em seu burro, subiria tudo novamente, de mãos vazias. Mas não estava triste. Na verdade, parecia ser bastante normal subir e descer a montanha todos os dias. Como se viajar por aquela montanha fosse o tudo o que se espera da vida.
Mundos que se encontram. Por Henrique Isidoro.
Fiquei um pouco inquieto. Era uma imagem linda e perturbadora ao mesmo tempo. Algo que o meu eu mais jovem não poderia ter sentido. Não teria conseguido tocar na estranheza de perceber como viver pode ser tão diferente daquilo que concebemos. Também foi como uma sina. Saí da realidade por um segundo para perceber como, mesmo que os anos passem, nunca vou ver nada para além desta estranheza. Nunca poderei olhar para um lugar como aquele homem olha, não importa a minha idade. A vida nunca será atravessar a montanha, com um peixe a bater no lombo do burro.
Uma curva num secret spot. Por Henrique Isidoro.
Viajei por Marrocos num projeto para descobrir e documentar o que está para além das suas ondas, especificamente para me cruzar com a sua música tradicional. Não encontrámos tudo o que precisávamos e, por isso, voltaremos para lá em breve. O homem e seu burro ainda estarão lá, naquela montanha de pedra vermelha.