A cada palavra minha que leio novamente, depois de um ano, fico um bocadinho mais perto de todas as coisas que senti naqueles dias. Leio o vento tão quente e tão denso que me vejo a lutar contra o chão para não vergar as costas. Leio o meu coração a palpitar quando olhava o breu da floresta durante a noite. E leio o quão perto estive do que estamos a viver agora. Mas ao contrário. Estava longe de todos. Não sabia de ninguém. O contacto perdido com tudo aquilo que achava normal no mundo. Numa terra de extra-terrestres que só o são porque os fomos empurrando para aqueles lugares onde só os mais fortes conseguem viver. E, no entanto, naqueles dias, o único significado que a palavra “isolamento” sabia ter era “liberdade”.
O RIO
A Amazónia é uma imensa região com muitos habitats diferentes. Ao rio que lhe dá nome, há outros mil que se juntam. Por exemplo, o encontro das águas do Rio Negro com o Solimões só acontece porque dois rios de composições, velocidades e proveniências diferentes decidem encontrar-se pelo seu caminho e, porque as águas não gostam muito de misturas, vemos um lado castanho e barrento e outro negro a jogar um braço de ferro assustador.
Um dos barcos que leva os locais aos lugares mais distantes da Amazónia.
A região do rio Tupana, onde estou, tem as suas particularidades. Porque a sua água é negra e, pelo menos aparentemente, o rio corre a baixas velocidades, ao entardecer, tirando uma fotografia e rodando-a de cabeça para baixo, o espelho de água seria tão perfeito que não seríamos capazes de discernir o que era reflexo e o que era real.
A água também é mais ácida, o que faz com que menos vida floresça aqui do que em outras partes da floresta. Para um europeu da cidade, como eu, isso pouco importa a não ser no que toca aos mosquitos que aqui não nos comem tanto. O rio, em algumas partes está compreendido em extensões de mais de 100 metros entre uma margem e o que parece, muitas vezes, ser a outra mas não costuma. Em vez de terra firme do outro lado, o que temos é a entrada das águas pela floresta inundada. Quem é daqui milenarmente sabe como navegar estas árvores submergidas em canoas e, agora, em lanchas motorizadas. É esta parte do rio que se torna a mais interessante. De dia, vemos os tucanos, beija-flores, araras, garças, falcões e outros pássaros de mil cores a ziguezaguear por entre as copas.
Há também macacos que avisam a floresta da nossa chegada, quando passamos.
Alguns aproximam-se, curiosos. Outros não tanto e só os vemos porque o Revelino com os olhos biónicos (como brincava uma das moças que trabalham no lodge) identificava com o dedo o balançar anormal dos galhos lá longe. De noite, seguia o foco das lanternas com o coração a bombear adrenalina para todo o meu corpo à espera de ver o refletir dos próximos olhos por entre as raízes sobre as águas. Eram jacarés, cobras e aranhas. Para o barco só vinham os filhotes o que me transmitia um misto de sensações – adoro vê-los de perto mas, por outro lado, não sei se consentiria com ser arrastado pelo pescoço de minha casa para que um bando de gente me pudesse olhar, tocar e cheirar antes de ser devolvido à minha vida.
Dois episódios noturnos me fizeram relembrar que este tipo de aventura que fazemos sem pensar, porque confiamos no motor do barco e nas mãos do guia, pode correr mal, de um momento para o outro. O primeiro foi a cara que o Revelino deixou passar quando, colocando rapidamente a mão para dentro do barco, pediu ao piloteiro da lancha, o Gélio para recuar. Quando lhe perguntei, baixinho, porque não tinha colocado este jacaré para dentro do barco, respondeu-me, também em confidência para não assustar quem vinha connosco na lancha, que já tinha sido mordido por um jacaré de 2 metros e que este tinha 3. Um pouco mais adiante, dirigimo-nos para o ramal de uma árvore em que não consegui ver nada até que, quase me cima de mim, estava uma pequena cobra. O Revelindo e o Gélio apressaram-se para a agarrar e, numa troca de investidas entre as mãos dos homens e os dentes da cobra, um dos dedos do Gélio levou uma picada. Eu já tinha percebido, no meio da comoção, que se tratava de uma anaconda e que o seu tamanho e falta de veneno não representavam um perigo demasiado grande, para além da dentada em si. Mas a possibilidade de ser mordido, picado ou arranhado pelos bichos que, normalmente, vemos pela tela de televisões, está logo ali, na árvore à nossa frente.
Ainda assim, poucas coisas me fizeram sentir tão parte do mundo como trepar, descalço entre as aranhas que se iam desviando dos meus pés, o tronco rugoso de uma árvore, para mergulhar, de cabeça, para dentro da Amazónia ao pôr-do-sol.
TENHO UMA COBRA NAS BOTAS
Durante viagens para quase todos os lugares que visito fora da Europa, habituei-me a bater os sapatos no chão, a sacudir as toalhas e roupas e olhar com cuidado para dentro da cama antes de me deitar. O objetivo é prevenir qualquer tipo de acidentes com animais exóticos que andam por aí com ferrões desagradáveis. Claro que a vontade é mista: evitar encontrar-me com as agulhas epidérmicas da natureza, por um lado, mas, por outro, sentir a emoção de descobrir que pernoitou na minha meia um sapinho venenoso ou um filhote de jararaca. Já me serviu bem este ritual quando, há uns anos atrás, me deparei com um pequeno escorpião num chinelo, na Nicarágua. Aqui, das botas, só me saiu uma pequena aranha branca e preta, pouco digna de menção dado que, por estas bandas, qualquer coisa menor que a palma da minha mão no que toca a artrópodes não merece mais do que três ou quatro palavras. Mas, se uma cobra verde com cara de poucos amigos e uma posição de ataque sempre presente à porta do quarto vale uma história, então deixo aqui alguns parágrafos.
Estávamos de serras elétricas na mão, em projeto para uma brincadeira que contarei um pouco mais à frente quando o Glauco, um turista tão entusiasta de bichos viscosos e cheios de dentes como eu, gritou: “João, traz a máquina!” Pelo tom do pedido, não ignorei e corri à procura do som que me dirigiu para a porta do meu quarto. E lá estava ela: com um pouco mais de um metro de comprimento e uma pequena cabeça verde, serpenteando lentamente pelo passadiço de madeira que dava para os quartos que ficavam nas traseiras, de frente para a floresta, como o meu. Parecia ter engolido algo que estava a ponto de perfurar-lhe o estômago, o que nos deixou bastante intrigados e, assim que nos viu, acelerou o deslize em direção ao buraco mais próximo que se encontrava na parede. Era o mesmo buraco pelo qual os sapos com quem costumava tomar banho no meu chuveiro entravam durante a noite. O pessoal da pousada rapidamente pôs-se ao seu encalço e a pequena cobra verde não gostou muito da ideia, lançando-se contra os objetos improvisados com os quais se tentava deter o seu avanço. No final, o animal foi devolvido, certamente confuso com todo aquele alvoroço em relação à sua existência, à floresta.
Já de volta a casa, em Portugal, quando escrevo este comentário ao texto, descobri, numa rápida pesquisa pela internet, que a cobra é venenosa, apesar da dificuldade que teria para injetar veneno num humano, dado que tem as presas retraídas, no final da boca.
Foi um dos momentos em que mais senti que estava, realmente, fora do meu meio, mesmo estando num lugar onde, durante algumas horas por dia, há um gerador a funcionar, luz elétrica, água a correr e sumo natural de goiaba e cupuaçu. Era a mata a lembrar-nos constantemente que quem aqui manda é ela e que nós somos apenas convidados, se a quisermos aproveitar. O mosquiteiro da zona onde jantávamos albergava toda a espécie de aranha, louva deus, besouro e outros rastejantes alados que faziam da rede mais um elemento do seu habitat. Lagartos verdes de 30 centímetros apressavam-se em corrida para algum buraco ou mato quando ouviam os nossos passos e os macaquinhos gostavam de ver, ao meio dia, se ninguém teria uma banana de sobra para lhes oferecer.
Uma anta que, de vez em quando, vinha dos confins da floresta para nos visitar.
Numa noite em que o céu se encheu de estrelas, desci à plataforma onde atracam as lanchas para fotografar de baixo a pousada e, no caminho elevado que dá para a margem do rio, foquei com a minha lanterna a água para ver o reluzir dos olhinhos de um pequeno jacaré que me olhava de volta.
Para fazer a fotografia que queria, precisava de mais ou menos trinta segundos sem nenhuma luz perto da câmara e sem nenhum movimento na plataforma. Foi um de dois momentos em que tive medo durante toda a viagem. Observava todos os movimentos do rio já que a solidão e a escuridão poderiam dar coragem a algum felino ou jacaré um pouco maior para virem provar um pouco de português.
Na volta, para descarregar as fotografias da máquina, era comum retirar as três ou quatro baratas freguesas do baldinho de arroz que pedi para retirar a humidade constante que disparava o sensor do meu telemóvel e não deixava que o carregasse. Claro está que o chão da mata tem muito mais bichos do que tinha a minha cama. Mas a minha cama é forrada de um azul clarinho que destoa do verde dos sapos e do castanho das aranhas. Na floresta mais frequentemente a vida ouve-se, se soubermos o que procurar com os ouvidos, mas, sobretudo, sente-se, de formas difíceis de explicar. Ver um sapo castanho avermelhado no solo de folhas mortas da floresta ou uma cobra verde na folhagem de um ramo é bem mais complicado. E é por isso que, quando os bichos invadem o “nosso” espaço, torna-se tão óbvio que não estamos aqui sozinhos e que não somos intocáveis. O Homo Deus que o Yuval Harari descreve, felizmente, ainda não chegou até aqui. E, na floresta, podemos não ser capazes de ver quem está lá connosco. Mas eles estão bem ali, e vêem-nos a nós.
Muito fixe! Encantada com a tua história, obrigada pela partilha 🙂
Obrigado! Hoje vai mais um bocadinho 🙂
Nem sei como é que vim aqui parar… Escrita muito boa de algo tão divino e puro como estar em entrega à natureza.
Através destas palavras senti que se passam também imagens e sentimentos vividos por ti na tua viagem. Nunca fiz nenhuma viagem deste género, mas reconheço o grande desafio que deve ser. Gostei muito deste testemunho, agradeço a partilha e espero por mais!
Olá Olá 🙂 Que bom que tenhas gostado! Fico mesmo feliz e estou a publicar mais, de dois em dois dias. Hoje vai mais um bocadinho 🙂
excelente João , vontade de ir à Amazónia tão grande. ADORO!
Se fores, garanto que não te arrependes. Hoje vou publicar o último!