Estou numa sala de paredes grossas e rugosas, num monte alentejano onde a rede não chega. Há muitas estrelas no alpendre. A lareira está acesa e um pequeno grupo de amigos, alguns dos melhores, outros novos, estão aterrados no sofá. Ao almoço comemos mexilhão e percebes que apanhámos hoje de manhã, no mar. E escrevo tonto, não só do vinho, e do meio cigarro que fumei antes de me sentar a escrever, mas mais porque desde dia 30, há sete dias atrás, venho de um corrupio de tantas coisas. Das lágrimas ao sexo, dos abraços ao fogo-de-artifício, entre ondas e serões a rir, quilómetros para cima e para baixo para andar feliz e contente. E estou bastante – feliz e contente, longe de todas as coisas assim que “importam”. Acabou de me chegar um café quente da mão de uma amiga e penso: porquê tudo isto? Que sorte tão grande.
Um ecossistema dentro de uma poça.
Só que isto não é real. Isto é um intervalo da chuva. Num mundo em que já não temos que caçar, colher, vergar as costas e sofrer para comer, ainda temos, no entanto, que “ter que fazer alguma coisa” para que a vidavá a algum lado. Não sei se para matar a fome ou se para haver propósito, mas trabalhar… já não é caçar, mas ainda é preciso.
Talvez sem saber, esta é uma das razões prováveis para a “profissão” que escolhi. Conto histórias. Mais que tudo, para vivê-las.
Dentro de uma história. Pela White Flag Productions.
Estimula-me andar assim, mesmo que com uma câmara atrás e alguém que tenha investido no nascer destas histórias, de coisa em coisa. Não deixa de ser um poço de prazer andar de poça em poça à procura de marisco só porque tem de se filmar a fogueira que o vai cozer. De buraco em buraco à procura de peixe. De onda em onda à procura do vento que me bate na cara quando a prancha acelera. Vou aprendendo como funcionam as anémonas quando a maré enche. Vou aprendendo como a onda enrola e faz mil tornados de espuma quando rebenta, vista do fundo do mar. E vou passando por tantos sítios com uma prancha debaixo do braço que vou sabendo também quem são as pessoas do mundo, como cozinham nas suas cozinhas, como falam cerrado ou doce, e tudo mais que me queiram ensinar e eu consiga guardar e esquecer ao mesmo tempo. Nisso tudo, derreto e choro muitas vezes. Fico com os pelos eriçados de tanta coisa que me vai furando por dentro enquanto passo. Mas, pelo menos, passo.
Uma dessas histórias, sobre uma Lisboa secreta.
Que sorte tão grande. E tão real. Tão cheia de trabalho também, de objetivos, de coisas a sério, tipo deadlines e estratégia e até horas e horas frustradas ao computador, às vezes. Não é igual a estar de férias. Mas, quando a ideia sai da minha cabeça e vem ao mundo toda cheia de vontade de me fazer ir por aí raspar-me todo nas pedras e nas ondas e nas poças e nessa gente toda, é parecido. E mais que isso, encaixa num mundo em que já não é preciso caçar, mas ainda é preciso fazer “qualquer coisa” que custe. Isto custa, mas sabe tão bem.
Não é que não haja mais nada. Sou cheio de valores e princípios. Às vezes, faço só pelos outros. Mas o maior de todos os princípios, pelo menos para já, sou eu próprio. Viver como gosto. Sofrer só se for bonito ou então, o mínimo possível. E sentir todas estas coisas sem ser preciso parar para ir fazer algo tão longe das poças, dos buracos submarinos, das ondas e dessa gente estranha que, de repente, sinta que estou a viver só para o intervalo da chuva.
Longe de mim achar que isto é responsabilidade minha. Vejo muito à minha volta que não tem nada a ver com isto. E entristece-me. Afinal, tão pouco mérito tive eu comparando o que fiz ao alinhamento das estrelas que me deu o ter nascido onde nasci, as experiências de miúdo, o mar à frente de casa, uma curiosidade meio que inata e um monte de gente que acha que o que eu faço é interessante também para elas próprias. Tive muito pouca mão nisso. Sempre gostei de cá andar, tive relativamente poucos problemas (não mais do que ninguém que está vivo, pelo menos), e só foi preciso pegar em todas estas coisas que já cá estavam e fazer isso ser algo que desse para o gasto. Mas está diante de mim e não consigo, agora, parar de tentar aumentar isto até ao dia em que tenha sentido tudo. Será que isso vai acontecer?
Coisas a mais para descobrir.
E é estúpido, adolescente e romântico, eu sei, mas conforta-me o saber que, quando o Covid apareceu para nos virar o mundo ao contrário, antes de estratégia e planos inteligentes, de oportunidades do mercado digital e sei lá que mais, o impulso para o meu projeto de 2020 tenha sido “vou sentir coisas”. De alguma maneira, pôs em cheque esta minha ideia de mim próprio. Este “sentidor de coisas” de barriga cheia, quando está tudo bem. Seria igual quando o prato estivesse meio vazio? Não sabia se haveria dinheiro para continuar a pagar a renda. Não sabia se todos os meus acordos com parceiros iriam por água abaixo (estavam a ir). Na verdade, não sabia nada. Mas sabia que iria à procura disto que estou a sentir agora. E percebi que era verdade. Penso muito e raramente chego a conclusões sem “se’s”, sólidas o suficiente para dizer que “aquilo” é o que acho. Nunca acho nada com força e escondo-me bastante por trás de “isto é uma linha de pensamento possível”. Mas, depois de o “De Norte a Sal” ter dado a primeira pedalada por uma estrada sem final à vista, pude dizer-me com alguma paz que, pelo menos para já, acredito mesmo nesta minha forma de estar vivo.
O segundo episódio, produzido pela WAY.
O resto é o resto – o ir de bicicleta ou de canoa, o passar na televisão ou não, o ter parceiras que me fizessem voltar a poder pagar a renda, os quilómetros por dia e onde jantaríamos – isso eram tudo “coisas”. Sim, coisas fundamentais e preciosas sem as quais nada do que se viu poderia ter acontecido. Mas coisas a seguir a esta tão mais importante: estar próximo desta sensação parva, egoísta, despropositada e irreal que é fazer aquilo de que se gosta quando não é preciso nem caçar, ou na verdade, nem sequer fazer mais nada.